quarta-feira, dezembro 23, 2009
segunda-feira, dezembro 14, 2009
30 dias em Luanda
Assim que pisei um pé fora do aeroporto percebi de imediato que isto aqui não era para brincadeiras. Momentos antes tinha preenchido uns papeis onde além da minha identificação, indicava o motivo da visita, o tempo de permanência e forneci a morada da empresa, tudo conforme as indicações que me haviam dado. Fizeram-me uma rápida entrevista onde repeti o que tinha colocado no formulário, devolveram-me o passaporte, peguei na minha mala de trinta quilos, peguei nos dois portáteis que coloquei a tiracolo e avancei por um corredor largo que findava num átrio sem janelas mas que tinha com uma pequena porta de correr automática e com vidros translúcidos. Aquela porta dava para o exterior. Segui sempre sem paragens e mantendo a cadência de passo possível quando se anda carregado. Lá fora sabia que estaria um homem local, funcionário da empresa, à minha espera. Avancei e saí... De repente estava do lado de fora com mais de uma centena de negros atentos à dita porta, todos dispostos ao longo de uma frágil guarda metálica, que se inclinava no meu sentido com o peso de tanta gente. Não havia nenhuma zona de transição, nenhuma praça de táxis, nenhum espaço onde pudesse pousar as coisas e sentar-me enquanto não identificava a pessoa que me ia buscar. Olhei para a ruidosa multidão, voltei a olhar mais atentamente e nada vi com o meu nome, estava parado sem saber o que fazer. Tentei entrar de novo pela porta, mas o seu automatismo apenas funcionava do interior para o exterior. Nada a fazer. Uma vez saído fiquei ali incauto com um calor de trinta e quatro graus, parede de um lado, multidão do outro, com uma pesada mala, dois computadores e um leve casaco vestido que me aquecia e fazia transpirar à mesma velocidade com que ficava assustado. Peguei no telemóvel e liguei para o contacto que tinha. Liguei três vezes sem resposta e tinha já um bandido qualquer a pedir-me dinheiro, primeiro pediu euros, depois dólares, depois já só queria moedas e colocava a mão numa das malas a dizer que me levava onde eu quisesse. Subi a voz a dizer que não tinha dinheiro, que não lhe ia dar nada e que desaparecesse dali. Fiz mais uma chamada e desta vez atenderam. Instantes depois apareceu um homem negro de ar amistoso que me chamou pelo nome e se identificou. Estava a salvo,literalmente.
Entretanto passou-se pouco mais de um mês desde a minha chegada. Para aqueles que cá estão há mais tempo, justificam facilmente episódios como o que eu passei à chegada com um riso trocista e um simples “isto é África, meu!” Eu próprio já digo isso como se o facto de “ser África” justifique tudo aquilo que vi e que não imaginaria ver. Vivo num confortável e seguro condomínio a Norte de Luanda a treze quilómetros do seu centro, onde está o estaleiro da obra onde trabalho e onde fica também a sede da empresa. Faço diariamente esse trajecto onde cruzo por estradas que atravessam os “musseques” (assim chamados aos bairros de lata), serpenteio o meu jipe branco de motor a gasolina por buracos capazes de engolir rodas inteiras, luto por vencer o trânsito, circulo sempre encostado ao carro que segue à minha frente de forma a não dar espaço a mais nenhum outro se colocar, vou de portas trancadas, ar condicionado ligado. Atravesso dois “musseques” com faixas penduradas onde se pode ler “Natal 2009 sem fome”, passo em frente a uma prisão, numa estrada que dá acesso à maior feira de África, o “Roque Santeiro”. Treze quilómetros que podem chegar a demorar três horas a percorrer. Treze quilómetros onde se vêem pessoas a tomar banho em poças de água (água?!), centenas de crianças descalças e sujas com pouco mais de um trapinho em cima do corpo, rios de esgotos de um cheiro inimaginável que descem por entre as casinhas feitas em chapa ondulada, tijolos roubados e argamassas argilosas, mulheres vestidas com cores garridas com crianças às costas seguras por panos atados ao abdómen, mulheres que também carregam pesadas e variadas cargas à cabeça para vender no “Roque”, rapazes novos vestidos com camisolas de clubes europeus sendo a maior parte do Benfica, homens adultos com ar envelhecido, gente sem água, sem luz nem saneamento, gente sem instrução, sem destino e sem prespectivas, mas que nas primeiras horas de sol caminha freneticamente em direcção ao “Roque” e à cidade para fazer algum dinheiro. E carros, muitos carros. A maior parte são Toyotas velhos que vêm para cá terminar a vida útil oriundos dos mais variados países, robustos camiões Kamaz com mais de vinte anos que carregam contentores enferrujados, centenas de “candongueiros”, que são os taxistas locais, com as suas Toyota Hiace azuis e brancas com quatro filas de bancos capazes de levar mais de vinte pessoas. Tudo isto de manhã cedo a circular naquele que será o pior trânsito que já vi. É gente a mais, carros a mais, todos na estrada a “acotovelarem-se” para andar um pouco mais para a frente, estradas alegadamente de duas faixas que se desdobram em sete, cruzamentos que viram caos, sinfonias de buzinas e condutores desesperados com as mãos na cabeça. Esqueçam tudo o que é código da estrada, bom senso, lei e ordem. Isto é África!
Chegado à cidade o cenário não é muito diferente no que toca ao volume de tráfego. Mas há menos camiões e começam a surgir grandes e reluzentes jipes com motores V8 e, por aqui e ali, berlinas de luxo de gente endinheirada. Há grandes prédios antigos tomados pelo êxodo de provincianos que fugiram da guerra, prédios sem luz nem elevador, sem água e de esgotos entupidos. Há muito lixo amontoado nas ruas, vê-se (e sente-se!) uma água fétida de cor esverdeada que escorre pelos passeios e esbarra em sarjetas entupidas. Nas avenidas há vendedores que caminham por entre o trânsito e que vendem tudo. Filmes em dvd, calculadoras, cabides de roupa, tabaco, cartões de telemóvel, bonés, camisolas do Benfica, vendem cd´s da Shakira, Madona e Michael Jackson, vendem ventoinhas, bancos de cozinha, conjuntos de tampões para rodas de carros, óculos de sol, sapatilhas de marca, plantas ornamentais, fruta, revistas, jornais e sei lá o quê mais. E trânsito, muito trânsito, ruas cheias de armadilhas como buracos traiçoeiros, tampas de saneamento inexistentes, transeuntes que se lembram de voltar para trás quando já vão no meio da rua e galinhas que aparecem no meio dos carros estacionados que nos trarão um problema muito sério se lhes passarmos uma roda por cima. É uma cidade a rebentar pelas costuras. Luanda foi concebida para quinhentos mil habitantes e hoje comporta cerca de seis milhões, ou “seis milhões upa upa...” como me dizem os conhecedores. Em Luanda vive metade da população angolana e apesar do seu o centro urbano não ser muito grande, tem uma periferia tomada por de milhões de pessoas fugidas da guerra nas províncias, que vivem em más condições nos ditos “musseques”. Há muito para fazer por aqui mas o governo local começa a fazer um bom esforço social na construção de hospitais e escolas. Preocupa-se com a melhoria da mobilidade ao construir mais e melhores estradas, com isso gera emprego e aposta na descentralização ao estimular a repovoação de cidades do interior que a pouco e pouco vão ficando mais povoadas e atractivas. Segundo os meus colegas que estão cá há mais tempo, as melhorias fazem-se sentir, mas na minha verde opinião, ainda vai demorar duas gerações até que Luanda tenha qualidade de vida e que retome a beleza e o carisma que já possuiu. No entanto consegue-se encontrar bons restaurantes e há bons sítios para sair à noite. É possível viver aqui tranquilamente desde que se tenha a atitude certa de não deixar de fazer o que se gosta, mas também não assumir riscos desnecessários, como andar sozinho à noite, ou mostrar alguns sinais exteriores de saúde financeira. É possível gostar daqui. Depois há o convívio e as relações pessoais. Antes de vir disseram-me que dentro da empresa haveria pessoas “assim e assado” que ia gostar mais de umas e de outras como em tudo na vida. E pude verificar isso mesmo. Naturalmente que tenho as minhas preferências e gosto das pessoas que me rodeiam, colegas de trabalho bem conhecedores das particularidades locais, que contam histórias aqui passadas numa perspectiva hospitaleira e que me têm proporcionado uma boa integração. Gente boa com bom carácter que dão firmes apertos de mão e que olham nos olhos quando conversam. Gosto de pessoas assim, porque sou assim. Gente amiga. Não gosto daqueles que usam o paternalismo pateta de quem já cá está há muito tempo e que vivem a fazer intrigas bacocas sobre o dia-a-dia laboral. Mas gosto de outros, daqueles que passado um par de dias já perguntam por mim, e que se reencontram comigo com sorrisos francos. Gosto disso e gosto do meu trabalho. Sei que ainda não estive aqui demasiado tempo seguido para que as saudades doam, mas se não tivesse a confiança em mim mesmo para tomar conta dessas adversidades, nem teria vindo. Sinto muito a falta da minha mulher e tenho a certeza que irá conhecer Luanda e tirar partido daqui como eu já começo a fazer. Dia-a-dia vou ficando menos sensível às assimetrias sociais, aos cenários que diariamente vejo, e vou aprendendo a viver aqui, tirando proveito do melhor do meu trabalho, do melhor das pessoas, do melhor desta terra e do melhor de mim mesmo.
Postado por Toni a 12/14/2009 8 Comentários